
O Ministério Público de Contas do Paraná (MPC-PR) protocolou a Representação nº 256319/25 junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR), por meio da qual requereu que seja determinado ao Município de Reserva que se abstenha de realizar contratações de médicos como forma de terceirização de serviço público.
O processo foi motivado por denúncia anônima recebida pelo canal de comunicação institucional faleconosco@mpc.pr.gov.br. Em síntese, o denunciante informou que, desde o ano de 2021, o Município de Reserva estaria terceirizando serviços de plantão médico para atendimento nas unidades pública de saúde, indicando suposta irregularidade nas respectivas contratações e a inadequação da contabilização dos gastos com pessoal.
Considerando a plausibilidade das alegações e a relevância do tema para a higidez fiscal e administrativa da gestão pública municipal, mediante o Despacho nº 533/25 o Relator do processo, Conselheiro Fernando Augusto Mello Guimarães, recebeu a Representação e determinou a citação do Município e de seu representante legal, o Prefeito Lucas Machado Ribeiro, para que no prazo de 15 dias prestassem esclarecimentos nos autos.
Denúncia
A denúncia foi recebida pelo Núcleo de Análise Técnica (NAT) do Ministério Público de Contas, o qual promoveu uma verificação da estrutura do quadro de médicos do Município de Reserva. De acordo com os dados do SIAP – Módulo Quadro de Cargos, identificou-se que a municipalidade dispunha de 48 vagas previstas em lei para o cargo de médico, distribuídas em especialidades, sendo 46 para Regime Estatutário e 2 para CLT. Contudo, no mês de dezembro de 2023, o ente possuía em seu quadro efetivo 8 servidores no cargo de médico Clínico Geral, sendo que os últimos certames realizados para o preenchimento do quadro de cargos médicos ocorreram somente em 2021, por intermédio dos Processos Seletivo Simplificado de Edital nº 002/2021 e 003/2021.
Outro ponto analisado foram as contratações realizadas pelo Município. Em consulta ao Portal da Transparência, o NAT encontrou o Contrato nº 155/2022, celebrado em 11 de julho de 2022 com a empresa Medprime Clínica Gestão e Saúde S/A, no valor total de R$ 3.325.206,24, com vigência de 12 meses, para a prestação de diversos serviços médicos e de enfermagem. Ocorre que, em junho de 2023, foi firmado um Termo Aditivo ao referido contrato, prorrogando sua vigência até 9 de julho de 2024, acrescentando o montante de R$ 3.325.206,24 ao valor contratual. Não obstante, também foram encontrados outros sete contratos celebrados entre a empresa Medprime Clínica Gestão e Saúde S/A e com o Município de Reserva, entre 2021 e 2023.
Por fim, por meio de uma verificação no Portal de Informação para Todos (PIT), identificou-se que os gastos com a empresa Medprime são contabilizados nos elementos de despesa 3.3.90.39.50.00 – Demais Despesas com Serviço Médico-Hospitalar, Odontológico e Laboratorial e, portanto, não são considerados como despesas com pessoal.
Diante da discrepância entre o número de vagas para o cargo de Médico previsto na legislação municipal, a quantidade de servidores efetivos integrando o quadro funcional do Município de Reserva, e a aparente ausência de realização de Concurso Público para o preenchimento do quadro efetivo, enviou-se demanda ao Município de Reserva, mediante o Canal de Comunicação – CACO, a fim de que fosse encaminhada a relação de servidores ativos ocupantes do cargo de Médico, e que se informasse o último Concurso Público realizado para o provimento efetivo de médicos municipais.
Em resposta, o Município informou que das 10 vagas no cargo de Médico, 8 estão ocupadas, e que, no exercício de 2023, foi realizado o Concurso Público de edital nº 001/2023, prevendo duas vagas para o cargo de Médico Clínico Geral. Não obstante, a legislação municipal prevê outras vagas para cargos de Médico, que não restaram preenchidas, de modo que o NAT concluiu pela existência de irregularidades referentes a terceirização de serviços públicos de saúde e a contabilização irregular de despesas com pessoal.
Sendo assim, foi instaurado o Procedimento de Apuração Preliminar – PAP nº 12/2024 e distribuído à 6ª Procuradoria de Contas do MPC-PR para apreciação.
Representação
Em sede de análise, a 6ªPC lembrou que a saúde é um direito fundamental (caput do artigo 6º da Constituição Federal de 1988 – CF/88), e é um dever do Estado garanti-la mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196 da CF). Além disso, o § 1º do art. 199 da Constituição dispõe que as instituições privadas somente poderão participar de forma complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS), mediante contrato de direito público ou convênio, com preferência para as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Assim, a terceirização não pode comprometer os princípios da universalidade, integralidade e equidade, pilares fundamentais do SUS e estabelecidos na Lei nº 8.080/1990.
Nesse sentido, ainda que se interprete a prestação de serviços pela empresa Medprime como de caráter complementar, haja vista o preenchimento de oito das dez vagas do quadro de cargos de Médico Clínico Geral e a realização recente de Concurso Público, é necessário observar que o Município de Reserva realiza a terceirização de serviços de médico plantonista desde o exercício de 2021, e que os contratos celebrados com a referida empresa ultrapassam o valor de R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais).
Destaca-se que inexiste impedimento de apoio a iniciativa privada para suprir o atendimento básico de saúde, desde que observada a forma complementar como contribuição ao aprimoramento das ações públicas determinadas constitucionalmente. Entretanto, a situação no Município revela que a terceirização na área da saúde é realizada de forma contínua e planejada, não configurando contratação pontual para complementar os serviços.
Além disso, o caso em questão ainda representa ofensa ao princípio constitucional da universalidade de acesso aos cargos públicos, visto que as contratações relatadas representam burla à obrigatoriedade da realização de concurso público, nos termos do art. 37, inciso II, da Constituição Federal.
Sobre o tema, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR) também possui um firme posicionamento pela ilegalidade da terceirização de serviço público, sobretudo os de saúde, conforme decisões expressas pelo Tribunal Pleno nos Acórdãos nº 712/16, nº 3059/20 e 2198/21.
Quanto ao segundo ponto da denúncia, referente a contabilização irregular das despesas, a 6ª Procuradoria de Contas observou que o art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101/2000) define que os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “Outras Despesas de Pessoal”.
O mesmo entendimento está previsto na Instrução Normativa n° 56/2011 do TCE-PR, que dispõe sobre a metodologia de apuração da receita corrente líquida e do limite de gastos com pessoal, e dá outras providências. A respectiva IN prevê que, para fins de apuração, deve ser considerada a essência da despesa sobre a forma (art. 3º, caput), devem ser somados os valores decorrentes de terceirização de serviços públicos (§ 2º) e, para o cômputo da despesa de pessoal, devem ser somados os valores relativos à substituição de serviços de natureza permanente (art. 16).
Ocorre que, conforme consulta no PIT, o Município de Reserva tem contabilizado os pagamentos à empresa Medprime na natureza de despesa 3.3.90.39.50.99 – Demais Despesas com Serviço Médico-Hospitalar, Odontológico e Laboratorial quando, segundo a legislação aplicável, a classificação correta dos gastos seria no elemento de despesa 3.3.90.34 – Outras Despesas de Pessoal, para fins de cômputo no gasto total com pessoal. Esse é, inclusive, o entendimento consignado no Acórdão nº 31/2024 do Pleno do TCE-PR, que julgou o mesmo objeto no âmbito do Município de Prudentópolis.
Dessa forma, o MPC-PR entende que também resta configurada a irregularidade na classificação das despesas utilizada pelo Município de Reserva, haja vista que a incorreta classificação da despesa altera a percepção da realidade fiscal do ente municipal.
Requerimentos Ministeriais
Em face das irregularidades verificadas, a 6ª Procuradoria de Contas apresentou a Representação nº 256319/25 em face do Município de Reserva, a fim de que o TCE-PR apure a irregularidade na terceirização de serviços públicos de saúde e a contabilização irregular de despesas com pessoal, bem como o ente municipal seja intimado a prestar esclarecimentos.
Sendo a Representação recebida e julgada procedente, a Procuradoria ainda requer que seja determinado ao Município que se abstenha de realizar contratações de médicos como forma de terceirização de serviço público, que comprove a realização de concurso público para a regularização do quadro de pessoal da área da saúde e que, em eventuais contratos firmados para a terceirização de mão de obra nos serviços de saúde, contabilize os gastos como “Outras Despesas de Pessoal” (elemento de despesa 3.3.90.34), de modo a incluí-los nos cálculos de despesa total de pessoal para apuração dos índices da LRF.
Ao final, em razão da reiterada prática de terceirização de serviços de saúde irregularmente, ainda sugeriu a aplicação da multa prevista no artigo 87, inciso IV, alínea “d”, da Lei Complementar Estadual nº 113/05 ao Prefeito Lucas Machado Ribeiro.
Andamento do processo
Distribuídos os autos ao gabinete do Conselheiro Fernando Augusto Mello Guimarães, o Relator decidiu pelo recebimento da Representação, conforme expresso no Despacho nº 533/25, e determinou que a Diretoria de Protocolo (DP) proceda à inclusão na autuação e à citação do Município, na pessoa de seu representante legal, para que, no prazo de 15 dias, exerçam o contraditório em face das supostas irregularidades noticiadas, apresentando os documentos que entenderem pertinentes.
No momento os autos aguardam manifestação das partes para prosseguimento da análise pela Coordenadoria de Gestão Municipal (CGM) e nova apreciação pelo Ministério Público de Contas, para então serem julgados em sessão do Pleno do TCE-PR.
Informação para consulta processual
Processo nº: 256319/25 Despacho nº: 533/25 – GCFAMG Assunto: Representação Entidade: Município de Reserva Relator: Conselheiro Fernando Augusto Mello Guimarães