
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) recentemente analisou o processo de Consulta apresentado pelo Município de São Jerônimo da Serra, que apresentou questionamentos a respeito da interpretação do artigo 14, inciso IV, da Lei de Licitações nº 14.133/2021. O artigo trata especificamente sobre as proibições de participação em licitação por pessoas que contenham vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista ou civil com dirigente do órgão, ou entidade contratante, ou com agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização ou na gestão do contrato.
Contexto
Por meio do processo de consulta, assim representado pelo Prefeito Venicius Djalma Rosa, o Município de São Jerônimo da Serra apresentou uma série de questionamentos, dos quais a principal preocupação reside na vedação de participação em licitações de empresas cujos sócios ou dirigentes possuam vínculo de parentesco (até terceiro grau) com o gestor ou dirigentes de órgãos municipais.
O Município buscou esclarecimentos sobre como aplicar essa regra em cidades pequenas, onde tais vínculos de parentesco são comuns no meio empresarial. Para isso, solicitou a definição clara do conceito de “dirigente de órgão”, questionando especificamente se os “Ordenadores de Despesas” (responsáveis por assinar termos de referência, liquidar pagamentos e fiscalizar contratos) se enquadrariam nessa categoria, mesmo que o contrato final seja assinado pelo Gestor Público.
Ainda, questionou se a interpretação da lei deveria ser restritiva, aplicando o impedimento apenas ao dirigente do órgão ou entidade contratante específica (como a gestora de um Fundo Municipal de Saúde), e se haveria necessidade de realizar licitações separadas caso o impedimento de parentesco se vincule a apenas um dirigente, permitindo que as empresas impedidas participem em certames de outros órgãos não afetados pelo vínculo.
A petição inicial foi devidamente acompanhada de parecer jurídico emitido pela Assessoria Jurídica do Município e manifestação do Controle Interno. No parecer jurídico, afirmou-se, de maneira resumida, que seria possível ampliar o rol de licitantes vedados desde que a previsão da proibição constasse expressamente no Edital, de forma que haveria discricionaridade quanto à interpretação das vedações previstas no art. 14, IV, da Lei n.º 14.133/21. Informou que considera como “dirigente de órgão” o “ordenador de despesas”, sendo aquele responsável por assinar o Termo de Referência e participar dos procedimentos de liquidação e fiscalização dos contratos, posição na qual poderia se enquadrar os secretários municipais.
O Controle Interno, por sua vez, emitiu parecer no sentido de haver a possibilidade de contratação de empresas cujos proprietários possuam grau de parentesco com agentes públicos, desde que esses não atuem como dirigentes de órgãos ou desempenhem funções na licitação ou gestão do contrato. Ainda, que devem ser considerados como “Dirigente de Órgão” os secretários municipais, subordinados ao Prefeito Municipal, assim como o “Ordenador de Despesas”.
Em sede de juízo de admissibilidade, a consulta foi recebida mediante Despacho nº 13/25 do Relator Conselheiro José Durval Mattos do Amaral, o qual, fez a seguinte afirmação: “Em que pese parte das dúvidas abordem questões factuais que escapam da abstração exigida para processos desta natureza, entendo possível o conhecimento da presente Consulta, a teor do artigo 311, §1° do Regimento Interno, que dispõe que “havendo relevante interesse público, devidamente motivado, a consulta que versar sobre dúvida quanto à interpretação e aplicação da legislação, em caso concreto, poderá ser conhecida, mas a resposta oferecida pelo Tribunal será sempre em tese”. Destaco que o interesse público a que se refere o dispositivo regimental acima, na visão deste relator, decorre da realidade de grande parte dos municípios paranaenses, que possuem um reduzido número de habitantes e que podem se enquadrar na situação descrita pelo consulente.”
Instrução
Os autos foram encaminhados à Supervisão de Jurisprudência e Biblioteca (SJB), a qual informou, mediante Informação nº 09/25, da existência de dois julgados específicos acerca da matéria, assim como de outras decisões relevantes, destacando Acórdãos que possuem força normativa.
Em seguida, a Coordenadoria de Gestão Municipal (CGM), conforme Instrução nº 1491/25, apresentou argumentos no sentido de que a aplicação da vedação contida no artigo 14, IV, pode ser afastada somente em hipóteses excepcionais, nas quais se verifique que a contratação do licitante (impedido) é a única alternativa capaz de atender ao objeto licitado e, desde que: seja comprovado nos autos licitatórios a excepcionalidade; seja demonstrada a compatibilidade dos preços contratados com aqueles praticados no mercado; sejam adotadas salvaguardas pelo controle interno para garantir a economicidade, regularidade e transparência da execução contratual; sejam adotadas, gradativamente e na medida do possível, maneiras de atrair potenciais competidores em licitações futuras.
Quanto ao questionamento relacionado ao conceito de “dirigente de órgão”, a unidade técnica informou que o enquadramento depende necessariamente do exame da legislação local que dispõe sobre a estrutura administrativa do órgão ou entidade contratada, de modo que a proibição se estenda aos demais componentes da linha hierárquica. Nesse sentido, o entendimento da CGM é de que o enquadramento na condição de “dirigente de órgão ou entidade contratante” depende, necessariamente, do exame da legislação local.
Posicionamento ministerial
O Ministério Público de Contas do Paraná (MPC-PR), ao analisar o caso em questão, conforme fundamentação contida no Parecer nº 162/25, fez considerações iniciais a respeito do dispositivo questionado. No caso em tela, no art. 14, inciso IV da Lei de Licitações, a segregação de funções e a designação dos servidores encontra-se consolidada, de modo que o impedimento é do interessado ao contratar com a Administração Pública.
Em relação ao primeiro questionamento, destacou que as decisões do TCE-PR têm sido pela possibilidade de realizar a contratação mediante inexigibilidade de licitação, quando a única empresa a prestar determinado serviço naquela localidade for pertencente a agente político municipal (Acórdãos nº 2787/22-Tribunal Pleno e 2146/18-Tribunal Pleno). O MPC-PR também já se manifestou sobre o tema ao afirmar que, caso verificado que o preço a ser contratado é compatível com o aplicado na região, bem como a inviabilidade de outras contratações pela onerosidade, não há óbice à contratação por inexigibilidade de licitação.
Em relação ao termo “dirigente de órgão”, a Procuradoria-Geral de Contas destacou que a definição legislativa que mais se aproximaria do conceito de “dirigente” encontra-se na Lei Federal nº 13.019/14, que trata do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, a qual traz no inciso IV do art. 2º, a seguinte definição sobre o vocábulo: “IV – dirigente: pessoa que detenha poderes de administração, gestão ou controle da organização da sociedade civil, habilitada a assinar termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação com a administração pública para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, ainda que delegue essa competência a terceiros.”
Portanto, para a citada lei e de acordo com o Enunciado citado, o “dirigente” deve ser entendido como a pessoa que atue efetivamente na entidade, seja por meio de função de administração, gestão, controle ou representação da pessoa jurídica, ou seja, deverá estar incumbido de atividades que envolvam a gestão executiva da entidade. No mesmo sentido, para o “ordenador de despesa”, trouxe a definição contida no §1º, do art. 80, do Decreto-Lei nº 200/67, que o define como “toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos (…)”.
Em resposta ao último questionamento, o MPC-PR informou que a prática de agrupamento de procedimentos licitatórios é comumente utilizada tanto para facilitar a gestão das contratações, como para a obtenção de economia de escala, racionalizando-se o gasto público, assim previsto no artigo 181 da Lei de Licitações nº 14.133/2021.
Por fim, o órgão ministerial ponderou que, em que pese esta forma de realizar compras e contratações seja uma diretriz da Nova Lei de Licitações e Contratos, muitas das inovações por ela trazidas acabam por esbarrar na ausência de estrutura de pequenos municípios, inviabilizando a sua implementação. Nesta toada, observados os princípios arrolados no art. 5º, da Lei nº 14.133/21, além dos demais dispositivos legais, dentro da margem de discricionariedade do Administrador Público, caberá a ele avaliar a melhor forma de se realizar o planejamento das contratações e compras, sendo tal ato considerado como atos de gestão.
Decisão
Conforme fundamentação contida no Acórdão nº 2172/25, os membros do Tribunal Pleno votaram por acompanhar, de maneira unanime, os votos do Relator, para responder aos questionamentos trazidos pelo Município de São Jerônimo da Serra nos seguintes termos:
1) Em tese, como deve ser interpretado o artigo 14, IV, da Lei 14133/2021, em municípios de pequeno índice populacional, que na sua grande maioria possuem empresas com vínculo de parentesco dentro do terceiro grau com o gestor ou dirigentes de órgãos?
Resposta: A aplicação da vedação contida no artigo 14, inciso IV da Lei n.º 14.133/2021 é a regra, podendo ser afastada tão somente em hipóteses excepcionais nas quais se verifique que a contratação do licitante sujeito à causa de impedimento em exame é a única alternativa capaz de atender ao objeto licitado, face as dificuldades enfrentadas no caso concreto e desde que: i) seja comprovado no bojo do processo de contratação a situação de excepcionalidade; ii) seja demonstrada a compatibilidade do preços contratados com aqueles praticados no mercado; e iii) sejam adotadas salvaguardas adicionais pelo controle interno a fim de garantir a lisura da contratação e da execução contratual.
2) Em tese, qual seria o conceito adequado para denominar/determinar as pessoas enquadradas como “dirigente de órgão”?
Resposta: A definição precisa de quais pessoas podem ser enquadradas como “dirigentes de órgão” dependerá, necessariamente, do exame da legislação local responsável por dispor acerca da estrutura administrativa a ser observada pelo órgão ou entidade contratante, considerando-se, também, o poder de influência do servidor sobre o resultado do certame ou a execução do contrato. Desse modo, a vedação contida no artigo 14, inciso IV da Lei n.º 14.133/21 deve ser estendida aos demais componentes da linha hierárquica do “dirigente” na estrutura estatal, em razão do poder de influência que o superior hierárquico pode exercer sobre a disputa do certame ou a execução do contrato.
3) Em tese, poderia ser considerado Dirigente de Órgão da Administração aquelas pessoas denominadas “Ordenadores de Despesas”, que assinam o termo de referência, participam do processo de pagamento e liquidação, e acompanhamento e fiscalização dos contratos, ainda que o contrato seja assinado pelo Gestor Público?
Resposta: Os ordenadores de despesas devem obediência à regra contida no artigo 14, inciso IV, da Lei n.º 14.133/21, seja por atuarem na condição de dirigente do órgão ou entidade contratante (caso tenha poder de direção), seja por atuarem na condição de agente público que desempenha função no procedimento licitatório ou na gestão do contrato.
4) Em tese, o conceito da Lei deve ser interpretado de forma restritiva? Sendo assim, ao vincular ao Dirigente de Órgãos ou Entidade Contratante, poderia se dizer a exemplo: que a Secretaria de Saúde, através da gestora do Fundo Municipal de Saúde com CNPJ específico, ao comprar determinado item, esta seria considerada dirigente do órgão e entidade contratante?
Resposta: Nos termos do que foi respondido na segunda questão formulada pelo consulente, o enquadramento na condição de “dirigente de órgão ou entidade contratante” dependerá, necessariamente, do exame da legislação local responsável por dispor acerca da estrutura administrativa a ser observada pelo órgão ou entidade contratante, considerando-se, também, o poder de influência do servidor sobre o resultado do certame ou a execução do contrato. Desse modo, a vedação contida no artigo 14, inciso IV da Lei n.º 14.133/21 deve ser estendida aos demais componentes da linha hierárquica do “dirigente” na estrutura estatal, em razão do poder de influência que o superior hierárquico pode exercer sobre a disputa do certame ou a execução do contrato.
5) Em tese, considerando a interpretação legal dada ao artigo 14, IV da Lei 14.133/2021, nas licitações concentradas (em respeito ao Art. 5° – Economicidade, Planejamento, Eficiência), caso o impedimento vincule-se ao dirigente do órgão, devem ser realizadas licitações separadas, para determinada aquisição, permitindo que os licitantes impedidos participem em certames para outros órgãos?
Resposta: A opção pela realização de licitações separadas ou conjuntas pertence ao juízo discricionário do administrador público, não competindo a esta Corte de Contas adentrar ao mérito do ato administrativo. No caso da opção pela realização de licitações, separadamente, por diferentes órgãos que não possuem hierarquia entre si dentro da estrutura municipal não há incidência do impedimento legal, eis que inexistente o poder de influência ou interferência de um órgão sobre os processos licitatórios realizados pelo outro. No caso da realização de licitações, conjuntamente, por diferentes órgãos da estrutura municipal haverá incidência do impedimento legal, tendo em vista a capacidade de influência ou interferência sobre o processo licitatório de todos os órgãos participantes.
Ao final, o Relator determinou, após o trânsito em julgado da decisão, encaminhar os autos à Supervisão de Jurisprudência e Biblioteca (SJB) para os registros cabíveis; à Coordenadoria-Geral de Fiscalização (CGF), para as finalidades discorridas no Despacho nº 372/25; e, por fim, à Diretoria de Protocolo, para encerramento do processo.
Informação para consulta processual
Processo nº: 854085/24 Acórdão nº: 2172/25 Assunto: Consulta Entidade: Município de São Jerônimo da Serra Relator: Conselheiro Jose Durval Mattos do Amaral